04 outubro 2020

soldados da missão da ONU Peacekeeping Minusca,

Um novo escândalo sexual 


«É dilacerante pensar que operadores humanitários abusaram sexualmente de mulheres enquanto lutavam contra a epidemia de Ébola na República Democrática do Congo». Com estas palavras, o Director da OMS para a África, Matshidiso Moeti, comentou a notícia dos abusos sexuais descobertos e denunciados na conclusão de uma investigação realizada ao longo de quase um ano pela agência de notícias The New Humanitarian e pela Thomson Reuters Foundation.

Certamente, não é a primeira vez que as Nações Unidas e as organizações não-governamentais têm de lidar com escândalos sexuais. Entre os mais graves, está o que eclodiu na República Centro-Africana, onde dezenas de meninas e de mulheres, incluindo bebés, foram abusadas sexualmente por soldados da missão da ONU Peacekeeping Minusca, instituída, em 2014, para proteger a população e garantir o cumprimento dos direitos humanos ameaçados durante a guerra civil que eclodiu em 2012.

Desta vez, já são mais de 50 as mulheres que afirmam ter sofrido assédio e violência sexual, entre Agosto de 2018 e Março último, no Leste do Congo, atingido por uma epidemia de Ébola que matou 2.299 pessoas e acabou no final de Junho de 2020. Muitas vítimas trabalhavam nas estruturas sanitárias, criadas para combater a epidemia, como cozinheiras, empregadas de limpeza, contactos, frequentemente problemáticos na África, entre equipas médicas e as comunidades locais. Em alguns casos, a ameaça de perder o emprego foi usada para forçá-las a ter relações sexuais; noutros casos, foi a oferta de contratação que as induziu a ter relações sexuais indesejadas. Algumas mulheres disseram que foram embriagadas, outras que foram atacadas em escritórios e hospitais, outras ainda que foram trancadas numa sala e abusadas. Uma jovem empregada de limpeza contou, por exemplo, que um médico lhe pediu que fosse até sua casa para falar de uma promoção. Mas, assim que ela entrou, o homem disse-lhe que ela receberia um aumento salarial desde que mantivesse relações sexuais com ele. Quando se recusou, o homem agrediu-a e começou a despi-la, apesar dos seus protestos. Felizmente, conseguiu chegar à porta da casa e fugir.

Entre os suspeitos, figuram, actualmente, homens de diferentes nacionalidades: Bélgica, Burkina Faso, Canadá, França, Guiné-Conacri, Costa do Marfim. A maioria dos casos diz respeito ao pessoal nomeado pela OMS para auxiliar os médicos locais. Mas o escândalo também envolve outros organismos, incluindo a Agência da ONU para a Infância, UNICEF, a Organização Internacional para as Migrações, OIM, e três organizações não-governamentais: Médicos sem Fronteiras, a Associação dos Médicos Alima e World Vision, que trata de adopções à distância. Um detalhe suscita ainda mais indignação. As mulheres relatam que os homens evitavam usar preservativo enquanto, como sublinha o The New Humanitarian, recomendavam à população que evitasse, o máximo possível, o contacto físico para impedir a propagação de Ébola.

Muitas mulheres hesitaram em falar abertamente, temendo retaliações ou perder o emprego. A maioria delas tinha vergonha de contar o que lhes acontecera. Aquelas que consentiram em falar, fizeram-no sob a garantia de anonimato. Agora que tantas tiveram a coragem de denunciar, não se exclui que surjam outras e que o fenómeno se revele ainda mais abrangente, tanto mais que as investigações realizadas dizem respeito apenas à cidade de Beni, no Kivu do Norte, enquanto a epidemia afectou toda a província e a vizinha província de Ituri.

A OMS declarou que serão promovidas investigações cuidadosas para determinar a responsabilidade. «Trair as pessoas que devemos ajudar é deplorável. Qualquer pessoa envolvida em tais actos – asseguram os líderes da agência da ONU – será responsabilizada pelas suas acções e sofrerá sérias consequências, incluindo a imediata demissão». «Não estamos dispostos a tolerar comportamentos semelhantes por parte dos nossos funcionários, dos nossos fornecedores e dos nossos parceiros», disse o porta-voz da OMS, Fadéla Chaib, reiterando a política de «tolerância zero» da agência. Mas as Nações Unidas, assim como as organizações não-governamentais, dizem-no sempre que surge um escândalo. No entanto, os escândalos continuam e muitos escapam sem sofrer nada ou pouco, talvez com a transferência para uma outra missão após um período de suspensão.

Já várias ONG’s contactadas e o próprio governo congolês afirmam não ter conhecimento de quaisquer casos de abusos, que nunca receberam queixas nos dois anos da epidemia. Mas as mulheres fornecem detalhes que tornam confiáveis as suas histórias. Muitos dos encontros sexuais ocorreram em hotéis que abrigam escritórios da ONU e de ONG’s, em particular o Okapi Palace e o Hotel Beni, onde as agências humanitárias reservam frequentemente inteiros blocos de quartos.

Os motoristas ao serviço da OMS e de ONG’s confirmam-no. Médicos, profissionais de saúde e administradores usavam-nos para levar as mulheres a hotéis, às suas casas ou aos escritórios para encontros sexuais. «A maioria de nós fazia-o – confessou um motorista –, era tão normal quanto comprar comida no supermercado»; e uma mulher recorda que um homem que abusou dela conduzia um veículo com a indicação “Organização Mundial da Saúde”.