06 abril 2022

BUCHA

VISTO DE FORA

De Bucha a Haia, passando pelas trincheiras da opinião

Tiago Franco // abril 5, 2022

Observei com a estupefacção de quem vê um acidente entre dois camiões, a voracidade das discussões sobre Bucha, na Ucrânia. Com cadáveres espalhados no chão, e um cenário que já não estamos habituados a ver na Europa (que é diferente de não existir), as trincheiras voltaram a formar-se a uma velocidade estonteante.

Li e ouvi todo o tipo de teorias sobre a autoria daquelas mortes. A Ucrânia acusa a Rússia de crimes de guerra, enquanto do Kremlin chegam notícias contrárias. Até aqui nada de novo: é uma guerra, ninguém assume seja o que for até ao dia de se apresentar em Haia.

Mas por cá, confortavelmente sentados nos nossos sofás, escorremos ódio baseado em certezas absolutas.
Discutimos teorias, ouvimos generais que defendem que tudo aquilo foi encenado. Outros dizem-nos que os russos estão a repetir a barbárie da Síria. Foi a mão que abanou à passagem dos soldados, as faixas com Z que indicariam a proximidade com os russos por parte das vítimas ou os corpos, em teoria ali deixados há três dias (altura da partida dos russos) que não mostravam um estado de decomposição satisfatório para 72 horas. 

 

Zelinsky acusado por uns por usar Bucha como uma última cartada para puxar o “Ocidente”, ao mesmo tempo que as hipóteses de acordo de paz se vão esfumando. Putin, garantem-nos, desistiu de Kiev, assumindo essa derrota para apostar tudo na conquista do leste ucraniano, unindo territórios com a Crimeia. Bucha tem todo o ar de ter sido um crime de guerra daqueles que, cedo ou tarde, chegam a Haia.

Em momento algum se tentou perceber o óbvio ou, pelo menos, perguntar o que mais interessa: de quem são aqueles corpos esquartejados no meio do chão?

Entre teorias de trincheira, alguém parou para pensar dois minutos que, factualmente, estavam ali centenas de pessoas atiradas para o chão, mortas, assassinadas, sem qualquer piedade?

Gente que terá filhos algures, família que procura saber deles, amigos que perderam o seu paradeiro. Gente como nós que está ali a figurar num quadro de horror para que, agora, no quente do lar, possamos discutir teorias sobre quem os matou, e para que, em conjunto, consigamos odiar o outro lado da barricada.



Ouvi os noticiários durante 24 horas. Li todas as teorias possíveis e imaginárias. Escutei generais, jornalistas e analistas de uma forma geral. Segui discussões intermináveis sobre o crime ou montagem. Nem uma palavra sobre os seres no chão que outrora estavam vivos.

A famosa coluna de 64 quilómetros do exército russo, estacionada nos arredores de Kiev durante semanas, parece ser agora um depósito de ferro-velho. Ainda bem, acrescento eu. Há notícias de, durante o reagrupamento das tropas em direcção a leste, aldeias e vilas terem sido pilhadas por russos. Mulheres e meninas apresentam agora as primeiras queixas de violação, em zonas que foram reconquistadas pelo exército ucraniano. Molestadas por soldados russos e, quem diria, também ucranianos (segundo o The Guardian).

A eterna discussão do lado civilizado numa guerra fez-me lembrar a história das invasões napoleónicas e dos nossos eternos aliados ingleses: depois de nos ajudarem a expulsar os franceses, roubavam ainda mais do que aqueles no regresso a casa.

Aprendi nas últimas horas todas as hipóteses teóricas do que poderá ter acontecido em Bucha. Tudo, menos quem morreu e por que razão. O mais importante, portanto, e o que verdadeiramente me interessa.

Entre as discussões políticas e as convicções ideológicas, vamos esquecendo que gente com uma história inocente está a pagar por decisões dos governantes.

É nisto que penso quando vejo os gritos de trincheira nas redes sociais.

É disto que me lembro quando vejo narrativas ensaiadas que nos obrigam a escolher um lado, seja ele qual for, e ali ficar, independentemente daquilo que a realidade nos vai mostrando.

Vamos perdendo a sensibilidade e o afecto. Queremos ter razão. Queremos que a nossa teoria passe no crivo dos vencedores. Não queremos saber de quem vai tombando. São danos colaterais.

Bucha diz muito sobre o agressor, bastante sobre a linha das regras que alguns julgam existir numa guerra. E, claro, qualquer coisa sobre nós.

Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)