05 outubro 2020

A República foi um desastre



O 5 de Outubro de 1910 não foi, como muito se ouve, nem a abertura de um ciclo de realização nacional, nem o início de uma era de concórdia, pelo que devemos começar por evocar um dos seus episódios mais sangrentos.

Em Outubro de 1918, vivia o mundo aterrado pela irrupção das duas pestes - a peste comunista e a peste da "gripe espanhola", metástases da Grande Guerra- e Portugal transido de fome e frio pela austeridade da guerra, mais o banditismo dos sicários de Afonso Costa pedindo desforra contra Sidónio e a sua polícia Preventiva. O "dezembrismo" sidonista descambara na anarquia repressiva, com polícias boçais agindo de moto proprio, sem rei nem roque, matando, espancando e intimidando quem se atravessasse no caminho (v. Artur Villares, a Leva da Morte).

A república estava tinta de sangue, fazendo jus à pedatura terrorista que se exibira com magnífica moldura de morticínios no 14 de Maio de 1915 - motim democrárico contra o chefe do governo Pimenta de Castro e contra o moderado Presidente Arriaga - e se aprimorara, entretanto, com a crescente pauperização e descalabro económico. A ordem nas ruas era tarefa das autoridades, mas estas foram delegando paulatinamente responsabilidades a grupos armados de apaniguados das facções no poder, ao ponto de não se saber mais quem agia por conta de quem. Ditadura, estado de emergência, filas de racionamento, desemprego e grande insegurança para pessoas e bens, era este o retrato do Portugal republicano oito anos após a implantação do regime. Foi neste quadro crepuscular, com acenos de messianismo no presidente-rei e sinais de angústia celestial (aparições de Fátima) que se deu a Leva da Morte. Ali para a Victor Cordon, um grupo de 153 presos políticos foi atacado por uma turba de adeptos de Sidónio. A chacina provocou sete mortos, entre os quais um dos famigerados mandantes do regicídio de 1908, o Visconde de Ribeira Brava. A república deglutia, um a um, os seus mentores.

Sidónio foi, entretanto, assassinado - num daqueles magnicídios portugueses, cujas causas jamais são apuradas - e o país assistiu à guerra civil entre monárquicos e republicanos. No rescaldo da Monarquia do Norte, regressou, de novo, a República Velha. Os ódios fratricidas entre os próceres republicanos - cada um com as suas inconfessáveis memórias, segredos e culpas na desgraça nacional - atingiram o zénite. A Formiga Branca - outro nome da Carbonária - fazia a lei dos caciques de Costa. O Estado deixara de existir. Em sua substituição, rufias de café, pistoleiros e bandidos fardados da Guarda Nacional Republicana impunham a lei da submissão a um regime que há muito perdera qualquer vestígio de legitimidade. Num inextrincável nó de intrigas politiqueiras, surgiu o boato que o governo de António Granjo (moderado) pretendia repor a ordem na casa, a começar pela GNR, guarda pretoriana que entretanto se dotara de artilharia pesada e tinha a servi-la oficiais da maior confiança das organizações secretas que sempre domiram a República. Afonso Costa queria voltar à ribalta, mas não tinha o aval de António José de Almeida, seu arqui-rival. Uma confusão própria de uma república de opereta. Perante a boataria e um pronunciamento militar iniciado em 21 de Outubro de 1921, Granjo pede a demissão. Almeida aceita-a. Nessa noite, Lisboa conheceu uma das noites mais violentas da sua história.

A célebre Camioneta Fantasma, conduzida pelo marujo Abel Olímpio - mais conhecido por Dente de Ouro, um daqueles valentes rapazes partidários de Afonso Costa - percorreu as mansões abastadas dos donos do país, levando um a um os lídimos heróis dos Banhos de S. Paulo* (Granjo, Carlos da Maia, Machado Santos, Botelho de Vasconcelos), abatendo-os a tiro ou perfurando-os com bainetas. O sórdido de tudo isto reside no facto dos assassinos serem acompanhados por jornalistas do Imprensa da Manhã, que orientavam e corrigiam o percurso da famigerada carripana. A república regorgitava no atoleiro de violência que havia abubado ao longo de décadas de práticas mafiosas desde os tempos da verrina anti-monárquica. Se lermos as Minhas Entrevistas con Abel Olimpio, o "Dente de Ouro", da autoria de Berta Maia, viúva de Carlos da Maia, ressuma a atmosfera de banditismo que foi a história desse enorme ludíbrio saído do 5 de Outubro de 1910. Até às fezes - o título que Givesuis deu a uma das mais cruas obras de denúncia política publicadas no século XX - aplica-se à república portuguesa que tantos teimam dourar.

MCB

Imagem: a morte de António Granjo.